08 Março 2023
"Acima de tudo, em todos os lugares e para uma massa crescente de pessoas, o nome de Hipátia tornou-se o símbolo mais popular de uma injustiça milenar: aquela que a Igreja cristã infligiu ao gênero feminino, maltratada, subjugada, perseguida, quando não queimada na fogueira sob a acusação de bruxaria", escreve a filóloga e bizantinista italiana Silvia Ronchey, professora da Universidade Roma Tre, em artigo publicado por La Repubblica, 07-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na primavera do quinto século de nossa era, quando o cristianismo acabava de ser proclamado a religião oficial, uma mulher foi brutalmente assassinada em Alexandria do Egito por ordem de um dos bispos mais poderosos da então jovem Igreja. Ela foi agredida na rua, despida, arrastada para a catedral e aí dilacerada com estilhaços afiados. Enquanto ela ainda respirava, seus olhos foram arrancados e os restos de seu corpo desmembrado foram lançados numa fogueira. Foi massacrada por clérigos cristãos a serviço de Cirilo de Alexandria, que na época era o belicoso e poderoso patriarca da megalópole do Egito. É também por isso que o assassinato ficou impune. A investigação imperial foi abafada, o magistrado responsável foi corrompido e Cirilo ainda hoje é um santo do calendário cristão.
A mulher chamava-se Hipátia e é considerada por muitos, também em âmbito eclesiástico, uma santa leiga. Era uma filósofa e cientista de imenso renome, que ensinava em cátedra pública não só as disciplinas em que era especialista, mas também a tolerância intelectual e religiosa, a resistência a todas as formas de fundamentalismo, a proteção das minorias, a separação do poder espiritual daquele secular. Sua posição rigorosa e a ascendência que exercia sobre os governantes contrastavam, para o bispo e seus seguidores, com o fato de ser mulher. Foi isso que lhe valeu o martírio. Há quem considere a fogueira de Hipátia o primeiro exemplo de caça às bruxas da inquisição cristã. Definição necessária, mas não suficiente. O dela foi um assassinato político e um verdadeiro feminicídio, tingido de sadismo e ódio de gênero.
Ao lado das disciplinas específicas das escolas platônicas, Hipátia transmitia um ensinamento delicado particularmente útil para a transição religiosa do paganismo para o cristianismo. Não era necessário trair a própria fé ou boa-fé para se converter. O Uno de Plotino e o Deus dos cristãos podiam se identificar. O círculo de seus discípulos, que incluía a classe dirigente alexandrina, pagã, cristã e judaica, incluía também o augusto prefeito Orestes, o mais alto representante do governo central do império, que por quase um século tinha sede em Constantinopla e não mais em Roma.
Mas Hipátia não era apenas mestra e diretora de consciência dos quadros políticos seculares, seguidos de perto pela hierarquia eclesiástica encabeçada pelo bispo. Ela mesma era uma política. Defendeu os diferentes grupos das tentativas das frentes fundamentalistas de cada um subjugar os outros. Em particular, pouco antes de ser assassinada, ela havia defendido a antiga comunidade judaica de Alexandria do terrível pogrom ordenado por Cirilo. O fato de ser a única mulher admitida em discussões políticas reservadas aos homens não a embaraçava nem a tornava menos impassível e lúcida em sua dialética.
“Ela não tinha escrúpulos em aparecer nas reuniões masculinas. Pelo contrário”, recordam as fontes eclesiásticas cristãs moderadas, “por causa da sua extraordinária sabedoria todos os homens lhe eram deferentes e olhavam para ela, no máximo, com espanto e temor reverencial”.
A versão da facção fundamentalista é diferente, segundo a qual Hipátia era uma bruxa “que dedicava todo o seu tempo à magia, aos astrolábios e aos instrumentos musicais, e enfeitiçava muita gente com os seus enganos satânicos. E o governador da cidade”, o augusto prefeito Orestes, “honrou-a exageradamente, porque ela também o seduzira com os seus feitiços”. Por isso “uma multidão de crentes em Deus se colocou em marcha para castigá-la e, depois de a arrancar de sua cátedra, arrastou-a para dentro da igreja grande. Aqui rasgaram suas roupas, a massacraram e levaram os restos de seu corpo para queimar na fogueira. E todo o povo cristão cercou o patriarca Cirilo e o aclamou porque ele havia libertado a cidade”.
Foi "uma não pequena infâmia esta cometida por Cirilo e pela Igreja de Alexandria", afirmam, ao contrário, as fontes cristãs de parte moderada. "Porque assassinatos e guerrilhas e coisas assim são algo totalmente estranho ao espírito de Cristo". Será o juízo da igreja bizantina por cerca de um milênio. De fato, o proselitismo armado de Cirilo contradizia completamente a ideia, embora abstrata, de tolerância defendida cem anos antes pelo edito de Constantino de 313. O fato é que Cirilo pretendia "corroer e condicionar o poder do estado além de qualquer limite jamais concedido à esfera sacerdotal": aspirava a um verdadeiro poder temporal, mais próximo do modelo do papado romano do que da rigorosa separação de poderes sancionada pelo Estado bizantino.
Talvez também por isso, a posição oficial da Igreja de Roma sobre Hipátia, apesar da gravidade e do caráter quase terrorista do antigo assassinato, sempre tenha permanecido ambígua. Apenas a ala modernista do catolicismo celebrou sua figura, reabrindo os atos daquele processo nunca concluído; como aconteceu na vertente leiga, onde a sua memória foi cultivada e renovada ao longo dos séculos e Hipátia tornou-se um ícone da liberdade de pensamento e de cada martírio sofrido em seu nome.
Mas há pelo menos duas décadas o ícone de Hipátia adquiriu uma nova fortuna na mídia. Não se trata mais da transferência dos intelectuais iluministas, que viam nela a efígie da tolerância e da liberdade de pensamento; ou dos letrados românticos, que nela aclamavam a pureza heroica; ou dos partidários do secularismo anticlerical, ou do racionalismo científico em oposição aos dogmas da religião e da fé; ou dos amantes do esoterismo neopagão. Tudo isso faz parte da história de Hipátia ao longo dos séculos que vão do iluminismo ao século XX, uma sobrevida que pertence a um passado em que, substancialmente, as elites intelectuais reconheciam-se em sua personagem, na sua tolerância, independência, não pertença, no seu martírio leigo.
Hoje, de ícone que era, Hipátia tornou-se um símbolo, porque muitas categorias diferentes de indivíduos se identificaram com ela. Hoje, o símbolo de Hipátia não é mais de elite, mas de massa. Porque Hipátia, para citar a epigrama de Páladas a ela dedicado na Antologia Palatina, é uma estrela que os séculos não só não apagaram, mas ao contrário tornaram mais viva, mais visível, mais compartilhável, mais universal, à medida em que a educação, a leitura, a cultura e o conhecimento do passado estenderam-se das elites às massas.
A história de Hipátia fala a estas últimas porque é desenhada por uma constelação de símbolos impressos na experiência da maioria. A derrota, a discriminação, a violência, a injustiça aparentemente sem apelação, sem redenção no mundo em que vivemos, mas que recebe sua retribuição de uma assembleia de posteridade cada vez maior, constroem um dos mitos mais universais da condição humana.
Nessa mulher assassinada por um poder tão fanático e brutal como impune ao longo dos séculos, parecem reconhecer-se todos os injustiçados: quem foi perseguido por fidelidade a um ideal; ou foi vítima do fanatismo e da intolerância que ressurgiram no terceiro milênio, das discriminações religiosas, ideológicas, raciais, ou simplesmente se sente perturbada por ela.
Acima de tudo, em todos os lugares e para uma massa crescente de pessoas, o nome de Hipátia tornou-se o símbolo mais popular de uma injustiça milenar: aquela que a Igreja cristã infligiu ao gênero feminino, maltratada, subjugada, perseguida, quando não queimada na fogueira sob a acusação de bruxaria.
Muitas desculpas foram pedidas nas últimas décadas pela Igreja pelas culpas perpetradas ao longo de sua história, mas ainda não por aquelas cometidas contra as mulheres. Em tempos em que os feminicídios se multiplicam, em que o gênero feminino ainda é hoje vítima de injustiças, discriminações, violências físicas, um pedido de perdão para Hipátia, ou ao menos um pronunciamento respeitoso e consciente sobre seu caso, teria o sentido histórico e atual, preciso e universal, de um pedido de desculpas dirigido, através desta figura exemplar, a todo o gênero feminino, e de uma clara condenação da violência contra as mulheres.
O aumento dos feminicídios no Rio Grande do Sul e no Brasil
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Hipátia, a mulher a quem ninguém pediu desculpas. Artigo de Silvia Ronchey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU